Nunca discuta com o garçom


O título deste texto resume um dos mais importantes aprendizados que tive na vida. Como alguém certa vez martelou “use filtro solar”, este talvez seja um outro conselho que vale a pena ser repetido à exaustão: nunca discuta com o garçom.

O motivo é simples, quase elementar: você não vai querer ter como inimigo uma pessoa que tem acesso praticamente irrestrito à sua refeição. Uma pequena grosseria atravessada já é motivo mais que suficiente para a sua feijoada completa vir com uma bela cusparada de brinde.

E, considerando as histórias que já ouvi de garçons, a saliva é o menor dos problemas.

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Certa vez, um grande amigo me falou sobre a existência de um fenômeno diagnosticado por ele nas relações sociais: a “microtirania“.

Explicando: não é raro observar funcionários, em cargos não-exatamente executivos, extremamente rigorosos no exercício dos “pequenos poderes” compreendidos pela sua atividade profissional. É o caso, por exemplo, do porteiro que obriga você a identificar-se cada vez que passa pela portaria, mesmo que isso se dê num intervalo de poucos minutos. Ou da secretária que não transmite o seu recado por considerar irrelevante. Ou do escriturário que se recusa a receber seus documentos por faltar a terceira via da cópia de uma certidão. Ou do agente de trânsito que interrompe o fluxo da sua via para desafogar uma outra. Ou, finalmente, do garçom que se recusa a trocar o seu pedido que veio diferente da foto do cardápio.

Esses “microtiranos” que nos atravessam o dia são todos empregados ou legítimos representantes – de empresas da iniciativa privada ou órgãos do poder público – investidos de poderes específicos que os colocam como autoridades máximas em determinadas situações.

E eu tenho a mais absoluta certeza que você já sofreu na mão de um deles.

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Foi quando apresentei a este amigo a minha “teoria da sublimação do proletariado“, segundo a qual todo e qualquer problema na relação entre o consumidor e um proletário tem origem nos vícios da relação trabalhista.

Formulei tal teoria ao longo dos anos em que trabalhei em um grande banco, e percebi de forma mais clara que todos os clichês da percepção dos consumidores (por exemplo, a de que sempre têm menos caixas funcionando do que o necessário), se explicam pelos mecanismos nefastos do sistema (no caso em exemplo, mais “caixas funcionando” exigiria o emprego de valiosos recursos humanos, sendo comercialmente mais interessante administrar a insatisfação dos clientes).

Quanto maior o escalão do funcionário e seu envolvimento nas decisões da entidade, maior a responsabilidade, claro. Mas na prática, mesmo gerentes e executivos têm pouca autonomia para resolver excepcionalidades, quanto mais desenvoltura para – desculpe o chavão – “pensar fora da caixa”.

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Por isso muitas vezes você perde as estribeiras tentando explicar ao telefone que recebeu uma cobrança indevida, mas a atendente do SAC explica que, infelizmente, segundo o “sistema” (olha ele aí de novo), não consta nenhuma irregularidade e o serviço vai permanecer bloqueado.

As coisas são tão claras aos olhos do consumidor lesado que o correto obviamente seria a desgraçada apertar meia dúzia de botões e cancelar a maldita cobrança. Mas pelo lado do funcionário, existem muitas outras questões envolvidas, como problemas técnicos, limitações de acesso, procedimentos burocratizados e metas proibitivas.

 

 

E mesmo uma eventual incompetência evidenciada por parte de algum “subalterno” tem muito mais a ver com motivos alheios à sua vontade: baixa escolaridade, falta de formação profissional, pouco acesso à cultura, má remuneração, péssimas condições de trabalho, constante ameaça de desemprego, assédio moral, insalubridade, etc, etc.

Portanto, não adianta se encher de uma covarde coragem para soltar os cachorros em quem está na ponta do iceberg. O buraquinho é mais embaixo. Ou mais em cima. Ou mais em você.

Alguns podem até pensar que engrossar e partir pro escândalo ajuda a resolver alguma coisa na base da pressão, mas quem já esteve do outro lado do balcão sabe que um sorriso – ou simplesmente o mínimo de educação – conseguem resultados que nenhum barraco obteria.

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Mesmo quando meu pedido vem grotescamente errado num restaurante da vida, considero até a hipótese de me contentar com o que foi servido, ou peço gentilmente a atenção do garçom ou do atendente para a solução do problema. Costuma funcionar muito melhor do que ironias, elevações de voz, ameaças ou dedos em riste – ainda mais quando ainda pretendo pedir sobremesa, um cafezinho e a conta.

Discutir indelicadamente com o garçom, em qualquer circunstância, é tão eficaz quanto esmurrar uma impressora sem tinta ou arremessar o celular travado contra a parede.

E tão incoerente quanto se matricular na aula de ioga sem cumprimentar o porteiro.